Parecia um jantar como outro qualquer. Sexta-feira à noite, num restaurante na zona leste de Aracaju. Pedimos, eu e minha mulher, Andressa, um rodízio de sushis. E fomos comendo, comendo e comendo.
Estava muito delicioso. Depois de dez minutos me empanturrando, comecei a sentir uma dor, um coceira na garganta. Soltei os "pauzinhos" e coloquei a mão no pescoço. "Tudo bem, querido?", perguntou Andressa. Não me lembro do que respondi; na verdade, nem se respondi.
A visão foi ficando turva. Quando eu pisquei, estava num parque. O balanço balançava conforme o vento. A gangorra girava levemente, fazendo um rangido característico. Folhas escorregavam pelos brinquedos. Tudo estava calmo. Como num 'insight' percebi onde estava. Era, era sim, tinha certeza que era o parque de frente para o meu prédio. Descíamos todo santo dia para brincar, até os 12 ou 13 anos. Eu, Marco Bola e Valdo. Eu, do 203, Bola do 202 e Valdo do 401. Era o prédio "Maria da Gionda". Era. Morei lá até os 15 anos. Pois bem, retomando. Estava eu naquele parque. Ninguem passava na Rua Hélio Matos, por detrás do parque. Nenhum carro. Nenhuma homem. Nenhum rato. Fazia silêncio e calmaria incomodava.
Não sei do que se tratava. Na hora não sabia o que pensar, mesmo assim não estava com medo. Então escutei, no meio daquele silêncio, uma respiração, quase que ofegante. Olhei para trás e aí sim senti um frio na espinha. Tinha um homem sentado no banco. No momento em que me virei e o vi senti medo; Entretanto, aos poucos, o sentimento se reverteu em esperança. É, talvez essa seja a expressão: esperança. Na verdade não sei se a palavra que quero exista na língua portuguesa. Ele estava vestido numa túnica marrom. Lembrava um franciscano, ou pelo menos parecia com as roupas de Francisco de Assis, com o detalhe do capuz que o tal homem usava. Não via o seu rosto. Estava escondido pela sombra da manta. A poeira e as folhas se movimentavam entre mim e ele.
- Com licença, senhor. O senhor pode-me dizer onde estamos? Quero dizer, não estou entendo. Simplesmente acordei aqui.
O homem nada disse. Se levantou e tirou o pano de cima da cabeça. Era um senhor calvo, e os poucos cabelos que lhe restavam na parte traseira da cabeça eram completamente brancos. Tinha um nariz pontiagudo e envergado. As sobrancelhas eram tão grandes quanto os de uma taturana. Ele se aproximou. Pensei no medo, mas meu coração não deixou. Ele sorriu e quando chegou mais perto comecei a pensar que já o conhecia. Sim. Eu o conhecia. O rosto feio e amável, sorridente e com alguns dentes faltando era de meu avô. José Roberto, grande cabra da peste. Veio do interior de Pernambuco, Brejo da Madre de Deus, e construiu uma família em Aracaju. Vou cortar parte da estória, principalmente pelo tamanho. Era ele. Meu querido vovô. Vô Zé, conhecido assim. Ele veio à minha direção rindo e me contagiou. Não poderia estar numa enrascada. Não que ele não risse em tais situações, mas porque não aparentava mesmo. Vô Zé colocou a mão direita no meu ombro e disse: - Danilo! Que saudade! Quase não te reconheci! Olhe pra você. – Falou-me sorrindo. Como não percebi. Estava mais perto do chão. Eu estava de novo com 8 ou 9 anos. Não, nove. Já estava com a cicatriz no meu pé esquerdo, adquirida na gangorra desse parque. Não pude falar nada. Estava processando o fato de ser criança de novo, quando ele colocou a mão esquerda no meu ombro direito e disse: - Vamos comigo, Nilo. Tenho algo para te mostrar. Pensei que íamos pegar o táxi. Estava começando a me lembrar do jantar; vagamente mas estava. Esperei o carro que viria nos pegar e perguntei ansioso: - Vô, para onde vamos? Como nós vamos? Me explique, por favor, o que está acontecendo... Eu estava jantando com uma mulher e quando eu pisquei acordei aqui. - Você vai entender, Nilo. Vai entender. E diferentemente de como pensei, nada veio nos buscar. Meu avô me virou e encostou seu queixo no meu ombro. Como uma fita rebobinando, tudo parecia voar. As pessoas andando para trás, os dias anoitecendo e as noites amanhecendo, numa questão de pouquíssimos segundos; até que meu avô estendeu a mão e tudo voltou a ter a velocidade normal. Bola e Valdo estavam fazendo embaixadinha com um outro garoto. “Meu Deus!” eu pensei. Era ele, o maldito. Era ele, o filha de uma vadia, Marcinho. Aquele canalha tinha acabado minha vida. Começou com uma briguinha besta de criança, mas tudo acabaria de forma diferente.
A questão era a seguinte: eu não batia com Marcinho. Vou contar tudo do começo. Lembrava-me agora que aquele era “O dia”. Foi o dia que brigamos pela primeira vez. Inacreditavelmente eu me lembrava de tudo. As roupas dos garotos, as babás tomando conta deles, o carro de som vendendo frutas. Tudo. Era como um filme na minha mente.
- Você se lembra o que aconteceu nesse dia, Nilo? – Perguntou-me carinhosamente o meu avô. - Lembro, vô. Lembro sim. – Falei encabulado. Encabulado pelo fato de que eu briguei com Marcinho por causa do meu avô. Marcinho xingara meu Vô Zé de “caipira banguelo”, “matuto esfomeado”, e coisas tão preconceituosas quanto. Eu chegava e escutava tudo. Agora veio uma cena que eu lembrava. A bola tinha ido para rua, onde os carros passavam a toda velocidade. Nessa hora eu descia. Mas não me vi descendo as escadas do prédio.
- É agora, Nilo. Vá lá e conserte tudo. Agora que danou-se. Eu não sabia o que fazer.O que será que ele estava falando? Será que era pra eu me desculpar? Desculpar de quê, se o Marcinho que tinha feito merda? - Vô, do que o senhor está falando? - Você sabe, Nilo. Desfaça a briga que você começou. - Eu não comecei, vô. Ele xingou o senhor de coisas horríveis. - Mas você deve perdoá-lo. E afinal, eu sou matuto e sou banguelo, e qual o problema? Vá lá e quando escutar ele falando de mim diga: ‘Posso jogar com vocês?’
Aquilo não entrava na minha cabeça. O vilão da minha infância estava sendo perdoado pelo homem que ele pisou. Na minha infância, eu tinha escutado ele dizer isso e parti pra cima dele. Tasquei-lhe uns bofetes na cara e ele me cuspiu. Chorei e gritei que nunca mais queria vê-lo. Ele me xingava e cuspia, mandando-me pros cantos mais feios do universo. Valdo e Bola nos separaram e foi pra sempre. Nunca mais nos “falamos”. Digo que nunca mais olhamos nos olhos um do outro e disseram algo que não fosse um palavrão. Depois, aos 15 anos, eu, sabendo, fiquei com uma ex-namorada dele. Irritado, ele meteu uma garrafinha de vidro na minha nuca, enquanto dançava com ela. Lá pelos dezesseis anos, encontrei-o altamente bêbado numa rua da periferia. Era de frente a um boteco. Eu o humilhei. Fiz piadinhas, tiramos sua roupa e quando ele começou a ter a lucidez de volta me ameaçou de morte. Tomei como nada. Nunca mais o vi, desde aquele dia. Agora estava na minha frente, e eu tinha na minha mão a chance de consertar tudo. - Mas por que vou consertar, vovô? Ele jamais me apareceu. - Porque ELE vai te matar se você não fizer isso, querido neto. – disse austero meu vô. Senti aquilo pulsar dentro de mim. - Explique-me melhor, vovô. O que houve? O jantar, o que era? - Eu te engasguei, Nilo. Materializei uma espinha na sua garganta. Sabe porque? Porque você pode mudar o seu destino. Dois minutos depois de você se engasgar, Márcio vai entrar pela porta daquele restaurante e meter um tiro nas suas costas. Ele é rancoroso, Nilo. Mas você pode mudar isso! Basta você ir ali e dizer e não ligar para o que ele disse. Pronto. Você vai salvar sua vida. - Mas... Mas... Como posso alterar o meu futuro? - Simplesmente faça, Nilo. Ele já vai embora.
Como quem dá um último respiro antes do mergulho, Nilo puxou ar e foi, de peito inchado. “Olha pra isso, quem chegou! O neto do matuto esfomeado! Cadê o banguelo? Haha!”. Danilo se segurou. Contou até 5 rápido e então disse: “Opa, Marcinho. Ta lá em casa. E aí, vamos jogar?” e assim começaram. Aos poucos os garotos foram embora. Nilo olhou para o avô que o fitou dos pés à cabeça e confirmou. Ele riu e deu tchau. O vento o levou, como leva a fumaça de uma chaminé. A escuridão veio e depois ele estava de fronte para uma luz. A luz foi tampada por uma mulher bonita. Ele reconheceu sua mulher. - Querido, você está bem? - Ótimo, ótimo. Mas o que houve? - Você se engasgou, olhe! – Disse Andressa mostrando-lhe uma espinha enorme.
Não se lembrara de nada. Sentou-se e os espectadores voltaram para os seus respectivos lugares. Depois que uns quatro garçons vieram ter certeza que tudo estava bem ele voltou a comer.
Comeu até que uma mão tocou no seu ombro. Era ele, o gentil. Era ele, o amigo de todas as horas, era Marcinho. “Ah, que saudade”, pensou Danilo. - Danilo! - Marcinho! – disse com avidez.
E Danilo apresentou Marcinho à Andressa e todos começaram a conversar. Foi convidado a se sentar e ficaram a noite toda.
Quando estavam saindo, Danilo daria uma carona para Marcinho. Quando foi entrar no carro viu um homem. Esse homem usava uma túnica marrom e tbm um capuz. Tinha um crucifixo de madeira enorme pendurado pelo pescoço. Não soube nunca quem era aquela figura, mas sentia uma alegria que nunca sentiu antes.
terça-feira, 21 de julho de 2009
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